Treze corpos inteiros para o estudo de 1.440 alunos, todos os anos. Essa é a realidade de quem frequenta qualquer curso de saúde da Universidade Federal do Ceará. Os cadáveres são utilizados nas disciplinas de anatomia não só da medicina mas também da odontologia, enfermagem fisioterapia, psicologia, farmácia e educação física. O número é muito baixo para a demanda.
O ensino nos corpos é fundamental para os “estudantes da área de saúde, notadamente, aqueles que vão manipular o corpo humano de maneira cirúrgica ou através de interpretação de exames de imagem, pra entender a posição correta daquela estrutura anatômica no corpo humano” explica Erivan Façanha, professor adjunto do Departamento de Morfologia da UFC.
Além disso, o professor explica que o contato com o cadáver garante que o aluno adquira uma nova “percepção sobre a vida”. O ensino no corpo vai auxiliar o futuro profissional a ter uma visão mais humana do seu trabalho. “O estudante vai refletir sobre as nossas fragilidades, sobre as nossas limitações e sobre a nossa finitude”, defende.
A dificuldade em adquirir corpos para a o estudo científico não é uma realidade só da UFC, mas atinge todas as oito escolas médicas, públicas e privadas, que existem no Ceará. Os corpos que chegam às universidades são, principalmente, de pessoas “não-reclamadas”, antigamente chamadas de indigentes.
O impasse da lei
A legislação brasileira que veio regular a distribuição dos corpos não-reclamados para as faculdades médicas é de 1992, sancionada pelo então presidente Itamar Franco. Mas, no Ceará, a regulamentação estadual é bem recente, data de 2016, e criou o Conselho Estadual de Distribuição de Cadáveres para fins de Ensino (Cedice) para tentar amenizar a problemática.
O Cedice é responsável por “regulamentar a doação de cadáveres para fins de ensino no Ceará com um detalhamento que propicia transparência e justiça nessa distribuição, estabelecendo critérios e uma ordem de destinação”, como explica o atual presidente, Francisco Hugo Leandro, coordenador de Medicina Legal da Perícia Forense do Estado (Pefoce).
Na prática, é feito um rodízio para que os corpos não-reclamados cheguem às faculdades. Mas a lei é rígida: não podem ser doados cadáveres de pessoas vítimas de violência, apenas morte natural. Podem ser doados também corpos de pessoas identificadas, mas que a família não reivindicou o corpo ou aquelas não identificadas encaminhadas pelo Sistema de Verificação de Óbitos (SVO).
Nesse contexto, desde a criação, só foram doados cinco corpos não-reclamados e outros sete estão em processo de doação. Diante do processo lento e burocrático, a única solução para que os alunos continuem o estudo de anatomia é depender não só de poucos cadáveres, mas de peças muito antigas. Alguns corpos estão no Laboratório de Anatomia e Dissecação Humana da UFC há décadas.
Peças deterioradas
“São poucos corpos, numa turma de 40 alunos, na maioria dos cursos, e 80 alunos na medicina, então, ficam todos em cima de dois ou três corpos querendo ver. É complicado”, desabafa a universitária Letícia Barbosa, que cursa o terceiro semestre de odontologia na UFC.
“Os corpos que nós temos estão em um estágio tão deteriorado que muitas vezes não é possível identificar os diferentes músculos e as artérias e prejudica, sim, o nosso ensino”, argumenta.
Letícia conta, ainda, que os pais dela não entendem o interesse que ela tem pelo estudo de anatomia. “Eles não entendem eu gostar de estar no meio de cadáveres, mas eles têm que entender que isso é que vai me capacitar para ser uma futura cirurgiã e não chegar no vivo, na prática, lembrando só o que está nos livros”.
A dificuldade é confirmada por Thiago Wesley, do segundo semestre de medicina. “A gente estava acostumado a estudar só pelo livro de anatomia, vendo as imagens coloridas, vendo tudo bonitinho. Mas quando chega no cadáver, pelo estado que ele está, às vezes não consegue visualizar bem as coisas”, pondera o aluno.
A situação é uma preocupação constante de quem está na linha de frente da formação desses profissionais. “Muitos alunos estão saindo de dentro das instituições de ensino sem a prática da anatomia em cadáver. E esses mesmos alunos vão chegar no mercado de trabalho e vão aprender diretamente no ser vivo o que eles deveriam estar aprendendo a partir de um corpo”, evidencia Delane Gondim, também professora de anatomia do Departamento de Morfologia da UFC. “Se a gente pensar em futuros cirurgiões, realmente ficamos bastante aflitos”.
Mesma opinião tem o professor Façanha, que também é vice-presidente do Cedice. “Com a escassez dos cadáveres, os corpos foram substituídos por peças sintéticas que têm o seu valor pedagógico, porém não traduzem a realidade da estrutura anatômica”. E ele vai além: “Eu acredito, concordando com o resultado de vários trabalhos científicos, que o ensino ficou prejudicado nesses últimos 20 anos, não somente aqui no Ceará, mas no mundo inteiro”, projeta.
Fonte: G1 CE