Em 30 de agosto 1881, um grupo de jangadeiros responsáveis pelo embarque de mercadorias no porto da capital da província do Ceará entrava em greve.
Liderados por José Luís Napoleão, um escravo liberto que comprara a própria liberdade – e a de quatro irmãs – com suas economias, e por Francisco José Nascimento, filho de pescadores da cidade de Aracati, eles se recusavam a transportar os negros escravizados que seriam levados dali para outras províncias.
Já tinham se passado 30 anos desde que o tráfico transatlântico havia sido proibido e uma década da Lei do Ventre Livre, que considerava livres todos os filhos de mulheres escravizadas nascidos a partir de sua promulgação.
A escravidão no Brasil, entretanto, se mantinha – ainda que sob uma oposição crescente da opinião pública, em parte influenciada pelo abolicionismo nos EUA e em diversos outros países, e diante da resistência dos escravizados contra a exploração de seu trabalho e a violência.
O simbolismo da insurreição dos jangadeiros correu o Império
Em 1883, os “catraieiros” do Amazonas, que desempenhavam a mesma função dos jangadeiros cearenses – ligavam o cais do porto aos navios com suas pequenas embarcações – também entraram em greve e se negaram a transportar os negros escravizados que seriam enviados do Norte a outras regiões do território.
No ano seguinte, as duas províncias aboliram a escravidão – quatro anos antes da assinatura da Lei Áurea em 13 de maio de 1888.
O pioneirismo foi resultado de uma conjunção de fatores, que vão desde o ativismo dos abolicionistas ao papel secundário dos escravizados na economia local.
A articulação com o movimento nacional, capitaneado por figuras como José do Patrocínio, Joaquim Nabuco e André Rebouças, foi determinante.
Além de avaliarem as causas, especialistas ouvidos pela BBC News Brasil também destacam um lado “obscuro” e menos discutido da abolição antecipada: a liberdade precária dos alforriados “sob condição”, que continuavam tendo de prestar serviço aos antigos senhores, muitos como empregados domésticos.
O tráfico interprovincial e o ‘Dragão do Mar’
A mão de obra escrava não chegou a ser predominante no Ceará como o foi nas províncias nordestinas de Pernambuco e da Bahia, diz o historiador Eurípedes Funes, da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Ela era usada em paralelo à força de trabalho de “pobres e livres” e de escravos indígenas. Por ser uma área de colonização tardia, acrescenta Franck Ribard, também do departamento de História da UFC, o Ceará concentrava número elevado de indígenas, muitos fugidos de outras regiões onde eram capturados em massa nas primeiras décadas da colonização e submetidos a trabalhos forçados.
A economia local era baseada na pecuária, que não demandava a mão de obra intensiva da grande empresa açucareira que moveu o Brasil colônia nos séculos 16 e 17.
O Amazonas, por sua vez, era a província com o menor número de homens e mulheres escravizados do Império, conta Patrícia Melo Sampaio, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
De acordo com o censo de 1872 – o primeiro do Brasil -, pouco mais de uma década antes da abolição viviam lá 979 escravizados, número bastante inferior aos 6,6 mil registrados no Mato Grosso, província que estava imediatamente antes na lista.
“Sua importância, contudo, não deve ser minimizada com base nesses dados. A propriedade escrava era um poderoso marcador de distinção social e de privilégios – e a elite possuidora de escravos tinha clareza disso”, ressalta a pesquisadora.
Isso porque ter escravos significava possuir um bem extremamente valioso em uma sociedade com poucas opções de crédito e baixa liquidez.
Além de vendê-los, os “senhores” poderiam alugá-los para prestar serviços a terceiros como amas de leite, criadas, carpinteiros e marceneiros – e os jornais do Ceará dessa época estão cheios de anúncios desse tipo – ou usá-los como lastro em operações mercantis, ou seja, como garantia em caso de não pagamento de dívidas.
“É preciso compreender a multiplicidade de facetas e do enraizamento da escravidão no Brasil imperial, e o Amazonas não escapa desta lógica.”
Isso explica, por exemplo, porque o tráfico interprovincial ganhou fôlego na década de 1870.
Nessa época, “senhores” de áreas em decadência econômica, como Norte e Nordeste, passaram a vender seus cativos para províncias em que se pagava muito por eles – especialmente as do Sudeste, onde a indústria do café crescia movida pelo trabalho do negro escravizado, explica a historiadora Maria Alice Rosa Ribeiro, que pesquisa a sociedade escravista campineira no Centro de Memória da Unicamp.
Milhares de homens e mulheres foram parar no Oeste Paulista e no Vale do Paraíba dessa maneira.
A história da greve dos jangadeiros entra justamente nesse contexto. José Luís Napoleão, Francisco José Nascimento – que ficaria conhecido como “Dragão do Mar” – e os colegas se recusaram a transportar os escravos da praia às embarcações que os levariam às cidades onde os novos “donos” os esperavam.
A história virou símbolo da abolição no Estado – e inclusive deu “força extra para a mobilização amazonense”, diz Patrícia Sampaio -, mas ela não foi “espontânea”, ressalta Ângela Alonso, professora livre-docente do departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP).
Fonte: G1 CE